hummingbird with the heart of a whale

do café do monte às escuras escreve.
do café do monte de sorrisos fáceis escreve
do lado de fora: vespa e cão presos à porta.
ela num canto, escrevendo à luz
da vela que trouxe da casa do seu amor
quando ele ainda a amava e cria sua.
no canto oposto, uma outra mulher:
um computador portátil como a vida
acompanha o ritmo da música
o som das teclas
que escrevem o que a voz não
lhe permite exteriorizar desde que foi operada e calada.
o cão ladra reclamando a liberdade
que deram à vespa vários minutos antes.
não terão visto que também estava preso?
o brilho da vela que aquece o rosto
um rosto que se aproxima demais
do incêndio que flutua na líquida cera
o brilho que quase aquece um já de si quente
coração inflamado: o tema recorrente
as vazias garrafas de cerveja
acumulam-se na mesa
do solitário homem que come demoradamente
um croque monsieur enquanto se perde
na beleza da menina bonita bordada de flor*
que lhe vai trocando
garrafas vazias por garrafas cheias
garrafas cheias que não lhe enchem o buraco no peito:
é visível que o vazio cresce. ele tira os óculos
para os limpar uma e outra vez.
mais uma vez e outra ainda
desta vez demora-se mais no gesto.
deixa-se ficar ali. demoradamente
de óculos na mão direita,
lenço na mão esquerda e olhar perdido.
desta feita olhar feito do que quer que o sonho lhe tenha dito,
que as lentes dos óculos acusam umas boas dioptrias.
volta a colocar os óculos no rosto.
pede mais uma cerveja.
quando a recebe clama pelo menu
apetece-me sobremesa
a menina bonita bordada de flor traz-lho
num ápice
e num ápice ele abana a mão
abana a cabeça e diz-lhe que não.
prefere que a menina bonita bordada de flor
lhe recomende uma. ela debita-lhe todas as sobremesas da casa,
em ordem alfabética
que são todas deliciosas, pode confiar!
ele pergunta, demorando-se em cada sílaba,
como quem quer viver em cada palavra
por tempo indeterminado, que nas palavras e nas sílabas,
nos grafemas e nos fonemas, não se paga renda,
não é preciso que nos abram a porta nem o sorriso
o abraço de sonho tem a força que se quiser e ela sente:
ele quer muito.
mas dizia, ele pergunta:
qual foi a primeira que dissestes?
bolo de chocolate
depois de torcer o nariz e parecer mais perdido
do que antes de ter pedido uma sugestão,
diz que
sim, pode ser bolo
a menina bonita bordada de flor não resiste desta vez
a fazer cara feia
assim que chega ao balcão desabafando
num cício com a colega que tão bem a entende.
o volume do hino ao Che baixa
e quase posso jurar que aumenta simultaneamente
a força com que a menina-portátil acerta nas teclas.
o homem mergulha a colher na fatia de bolo de chocolate
desmontando-o em pedaços como quem procura
um prémio ou uma fava?
não chega a provar nem um pedaço.
pega no telemóvel que tem partilhado o seu
embevecido olhar com a menina bonita bordada de flor
e numa amachucada folha de papel
que contém um número errado para onde liga
descobrindo que está errado. que
é engano, porra
que tudo aquilo foi na verdade um engano
pede a conta, paga, deixando uma obesa gorjeta e caminha
deixando para trás o telemóvel e a menina bonita bordada de flor.
aproxima-se do miradouro de Nossa Senhora do Monte,
sobe o muro e lança-se ao vento como se se lançasse nos [braços da menina bonita bordada de flor.
por momentos é isso que sente. por momentos.

* expressão de uma canção de Marcelo Camelo: menina bordada
tudo isto no Café do Monte de sorrisos fáceis e paredes cor de beringela onde vou levar os três quartos da minha lua cheia [ideia linda linda linda da Joaninha voa-escreve].

8 comentários:

Pedro disse...

Muito bonito

amantesmaria disse...

Mesmo! Dum bonito surreal.

Realmente são mesmo uma bênção esses cafés que nos recebem para o pequeno-almoço, cerveja, sobremesa e pequeno (ou largo) devaneio!

:)

ana salomé disse...

fabuloso, raquel* o teu coração é do tamanho de um infinito luar...*

isto está muito, muito bonito.
beijo grande

V. disse...

estou para aqui a ler e reler e a tentar dizer alguma coisa de jeito. só me sai um ohhhh! a salomé já disse o resto. :)

(gostava de também saber escrever assim no meu café de sorrisos fáceis. sim, no porto existem lugares iluminados. e isto lembrou-me que os três quartos da (minha) lua cheia também hão-de adorar passear na inbicta! :p)

* grande

intruso disse...

:)

tudo isto está muito bem (d)escrito.

(bonito mesmo)

kelly disse...

ó meninos! obrigada pelas simpáticas palavras. sorriso gordo. aquele lugar é mágico, tenho ambivalentes sensações! este foi o 1º dia em que levei o caderno na mochila e ele não se deixou ficar quieto. e foi uma passagem rápida, tive de sair depressa, coisas de vida corrida, que há ali tantas histórias e imagens que é de ficar a doer o pulso! beijos a todos

Salomé: como calculas estou derrrrretida com a imagem do coração "do tamanho de um infinito luar": uma ideia que me é caríssima, dulcíssima, espcialíssima!

vanessa: sim, a inbicta!! saudades. nela já coube o meu ninho

e as meninas, sempre vêm à cidade do rio-mar? as 24h estão mto complicadas, mas havemos de arranjar qq coisa!!

abraços apertados

Joana disse...

A "Joaninha voa-escreve" co ideias tri-lindas sou eu? :P

..............................

Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!

..............................

Jinhos.

P.S. Eu vou. Não sei bem quando este mês, mas vou. :P

kelly disse...

ora pois, és tu menina J!
tentarei sobreviver para vos receber, que isto está complicado!!!
beijinhos
r

a doceira (mail)

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